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EPÍLOGOS   

A escrita é a mãe da Historia. Quando coube aos homens escolher qual marca, no longo caminho da superação da animalidade, serviria de limiar para ela – seu exercício maior de autoconsciência, não foi o controle do fogo, nem o uso da fala – embaçada na noite dos tempos, nem o surgimento da cidade, ainda de forma incipiente, o marco escolhido, mas o milagre da escrita. A partir daquele momento mágico, a memoria se desvinculava da transmissão oral, os rapsodos podiam aceitar humildemente seus limites, pois algo transmitiria a voz humana além da própria voz. 

 

Símbolo máximo da fixação da escrita, o livro, o nosso livro, o códex surgido sob as últimas luzes da magnitude romana, sempre fascinou Éric Collette, mas não apenas na sua função precípuo, material, metafisica, platônica, de veículo da leitura, antes em quase esquecida – exceção dos bibliófilos e outros felizes obcecados – materialidade. 

O livro morfemas o texto, de livro em livro, de edição em edição, é imortal. Pois justamente nesse objeto quase sempre efêmero, impermanente como tudo o que um dia existiu, que o artista fixou sua atenção, a sua visão privilegiada. Há um choque de conceitos em todas as obras que compõem «Epílogos», o choque entre a fragilidade do que, sob outro ponto de vista, e duradouro, o espanto pela morte do que, em sua essência geradora, é indestrutível. 

 

Unindo as técnicas as mais diversas, passando do bidimensional ao escultórico, de volume a pintura, Collette nos traz outro elemento central nesse ritual cruel que é mirar pelo umbigo da nossa efemeridade, os ossos, essa mais duradoura e fundamental estrutura das formas biológicas evoluídas, que sempre fascinou nossos antepassados de todas as partes da terra. 

Elemento recorrente nas artes dos povos primitivos, nas artes primeiras, para usar a expressão forjada pelo politicamente correto, dele nasceram os primeiros instrumentos musicais, berço daquela que seria a mais alta aventura espiritual da humanidade. Com eles, os ossos – de animais ou humanos – foram confeccionados altares, ídolos, armas e paliçadas, toda uma parafernália magica que parece convencida da existência daquilo que, a muita distância, os cabalistas da Idade Media chamaram de «hálito dos ossos». 

 

Lançando mão desses dois elementos – um, símbolo da memoria, outro, símbolo da morte – para não falar do mais importante, a estrutura, o cromatismo, a estética plástica, Eric Collette cria a aventura insólita de «Epílogo », uma viagem dúbia, contraditória, esquizofrênica, por um desfiladeiro que tem como uma parede a nossa grandiosa permanência, e como outra a nossa miserável efemeridade de filhos do tempo, de seres criados para a morte. 

O encontro insólito de paginas desfeitas, das encadernações estripadas, dos frontispícios mutilados, com o cálcio silencioso dos despejos da vida, tudo transfigurado pela mão humana, pela tinta salvadora, pela linha sábia, pelo corte exato, nos leva a uma visão privilegiada da nossa condição intrínseca, caminhantes compulsórios da corda esticada entre e sobre o abismo, fonte de nossa tragédia e nossa grandeza.

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